Réquiem* para o patriarca

– “Onde começa o cavalheirismo e termina o machismo?”, pergunta Bruno.

– “O que você acha?, eu digo.

– “Ontem eu tava numa roda conversando com um cara e várias mulheres – todas financeiramente independentes. Para elas o cara tem que pagar a conta do jantar – é uma ‘cortesia’ nunca deixá-las dividir”.

Bruno diz que, embora possa contar nos dedos as vezes em que dividiu uma conta, fica incomodado com a imposição de um modelo único, “clássico, que sempre deu merda prás mulheres”. Esses “pré-estabelecidos” não seriam expressão do “machismo”? “Qual sua opinião?”

Não sei, digo; bela hora prá você me perguntar isso né? A fogueira da Fernanda Torres ainda arde; a intolerância mina, na nascente, a reflexão e o debate. Nesse mundo da certeza –o serial killer da pesquisa – não seria melhor mudar de assunto, montar na minha vassoura e fugir da caça às bruxas renascida?

Resolvo abandonar a prudência: ok, Bruno, vou tentar escrever o próximo post sobre isso – esse era o desafio que ele me propunha.

Acho que meu mundo não se divide em “feministas” x “machistas”. O patriarca morre dentro da gente, e morre de uma morte lenta e doída. Uma euforia maníaca esconde essa dor e fica parecendo que pagar a própria conta é o paraíso na terra. Não é bem assim. Quer a gente goste ou não, no fundo ou no raso, nossa ambivalência espreita: comemoramos nossa independência mas também desejamos o mimo. Não se apresse a achar que os homens estão protegidos dessa ambivalência. Fora do comando – e não são poucos – podem vir a se sentir ameaçados em sua potência e virilidade. Eles gostam de “bancar” a “sua” mulher. Podem até não poder – ou não querer. A cultura é ambivalente. E é nela que nosso ser – ou nosso eu – se forma.

Os movimentos feministas lutaram pelas liberdades. Impor um modelo é atacar essas liberdades – como a liberdade de negociar arranjos e compensações à la carte. As estatísticas confirmam que, dividindo ou não o restaurante, as viagens ou as despesas da casa, a mulher continua pagando a conta com a moeda das muitas horas de trabalho doméstico não-remunerado e sem carteira assinada – com ou sem filhos.

 Susan e Peter se apaixonaram e se casaram. Uns quatro anos depois ela se tornou a provedora do casal, pagando 90% da despesa. Só pensava em largar o marido, esse Peter que já não representava o “sexo forte” por quem ela havia se apaixonado e que se tornara menos atraente e viril. Susan se culpava por isso, e se sentia a pior das criaturas: “Eu me odeio. Eu me odeio por me ver assim sexista (machista). Eu me odeio por gostar de ser cuidada. Eu me odeio por não sentir mais tesão pelo Peter. Eu me odeio por querer um estilo de vida tradicional, com um homem provedor. Eu me odeio por não conseguir me ver como mãe e provedora. Tenho muita vergonha dos meus sentimentos. Não queria sentir nada disso mas é isso o que eu sinto”.

Não por acaso falei de um casal americano. A mãe de Susan, pertencendo à segunda geração pós-feminismo nos Estados Unidos, criou a filha com esses valores. Que, como vimos, não imunizaram Susan contra a ambivalência doída. Por mais estridentes que sejam os gritos, não adianta: no terreno dos nossos afetos o politicamente correto é mudo.

Essa conversa me lembrou o dia em que, já embarcados, a comandante veio ao microfone para se apresentar como responsável pelo vôo. Um homem correu para a porta do avião pedindo, quase implorando, para desembarcar: ele não voaria com uma mulher pilotando. Embora nada tenha dito, “magoei”. O que não me impediu de notar a turbulência que o speech da comandante também me levava a atravessar. Hoje acho bem engraçado que só quando estamos pousando nós escutamos a voz dela, da comandante…

*Prece ou missa para os mortos.

Publicado por

Marcia Neder

Marcia Neder é psicanalista com Pós-doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-SP, pesquisadora e autora de vários artigos e livros. Seus últimos livros publicados são: "Os filhos da Mãe" lançado em maio pela Editora Leya/Casa da Palavra e "Déspotas mirins: o poder nas novas famílias" (Editora Zagodoni).

23 comentários em “Réquiem* para o patriarca”

    1. Obrigada. Beijo, Bia.
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    1. Que bom Elisa! Vamos aos próximos… Beijo.
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  1. Já debati o assunto em mesa de bar, roda de calçada, em rede social, em 3 estados geográficos, com pessoas em estados civis distintos e conclui que o cavalheirismo nunca sairá de moda. É o “pretinho básico” do relacionamento.

    1. ahahahahah adorei a metáfora!!! Vou guardá-la na bolsinha do pretinho básico e assim que puder vou levá-la prá festa. Beijo.
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  2. Sou feminista desde criancinha. Agora, já velhinho, penso que talvez seja hora de ter um abrigo.

    1. Você sempre teve um abrigo comigo, meu amigo nada velhinho! Um beijo e saudade – notei que sumiu de mim…
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    1. Ótimo! Acompanhe os vindouros! Um beijo.
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  3. Minha querida, só você pra desencravar esse assunto aparentemente resolvido! Mas como sabemos que nunca será, a hora é agora…Confesso que hoje, aos sessenta, prefiro saborear o cavalheirismo, enquanto apenas desprezo o machismo quando surge vez ou outra à minha frente.Vida longa aos cavalheiros que ainda dominam a arte de encantar e agradar sem serem se xistas!

  4. Realmente muito bom!
    Não há como ser extremista quando o assunto é machismo-feminismo.
    Por mais que nos julguemos feministas ,sempre ficaremos com aquela vontade do cavalheirismo vez ou outra!

    1. É mesmo um tema espinhoso e meu amigo se surpreendeu porque não sabia que eu era um tantinho machista… Conversar é assim né? Prá que todos têm que concordar com tudo? Gosto demais dessa arte prá reduzi-la ao ofício da impressora, registrando o lido ou ouvido. Um beijo.
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    1. Marcia, este tema é espinhoso mesmo. Tenho horror a machismo, quase não consigo ficar perto. ” minha cara me condena”, verdade por que o fato de não gostar de algo ou alguém, minha fisionomia se transforma, quem me conhece já me pede paciência.
      Será que tenho jeito? Não suporto machismo, mas gosto de conta paga, abrir porta do carro, levantar da mesa ao chegar uma mulher à mesa; que coloquem minha sacola de mão no porta- volume no avião, puxar minha ” malinha” na esteira. Sou um caso perdido, Marcia. Beijos.

  5. Texto excelente. Perfeita a colocação que impor um modelo é limitar a liberdade da luta feminista! Não tem nenhum problema dividir conta ou a mulher pagar integralmente, o problema é o homem ser feminista somente nesta hora. Pq as tarefas domésticas, as responsabilidades com os filhos, a escolha do vinho entre outros “pequenos” detalhes também não são divididas???? O fato da mulher estar em processo de luta e reconhecimento não inviabiliza a gentileza de se pagar uma conta por exemplo. Obrigada por trazer essas questões à sociedade, precisamos falar sobre isso.

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