Mercado de casamento opera em baixa

– “E o post novo?”, perguntou a Julia.

– “Pois é”, respondi. “Será que tem alguém nesses dias querendo ler alguma coisa sobre o amor? E a minha concentração, que anda tão perdida por aí?”.

– “Então…escreve sobre isso”

– “Vixe… não!”

Nas últimas semanas minha cabeça vagava em busca do próximo post, mergulhada nas análises, debates e fatos que passaram a invadir nosso cotidiano. Não bastasse isso entravam em cena os preparativos finais para meu novo projeto, com uma intensa troca de e-mails, mensagens, telefonemas, num vai-e-vem diário de conversas, perguntas e decisões inadiáveis. Escalar o Himalaia devia ser mais fácil do que manter concentração e disciplina.

Em meio a esses pensamentos topei com um e-mail da Lulu. Oops, quem é essa? “Olá Marcia, nós temos algumas notícias empolgantes para compartilhar. O Lulu tem um novo propósito e agora é 100% dedicado a te ajudar a encontrar o Sr. Perfeito ou a Sra. Maravilhosa …Com amor, Lulu”.

Ahhhaaaan! então “a” Lulu é “o” Lulu – aquele aplicativo do qual, desde seu lançamento atormentado eu nunca mais tinha ouvido falar. Esse mercado virtual de casamentos reaparecia agora na minha vida, cheio de amor prá dar como político em período eleitoral, prometendo me ajudar a encontrar a minha cara-metade. Ora ora, pelo andar da carruagem o tal sonho dourado deve estar precisando de propaganda. Quem sabe um empurrãozinho da/o Lulu poderia reverter o que as pesquisas indicam? E o que elas dizem é que o casamento vem descendo a ladeira do desencanto, principalmente entre as mulheres – isso mesmo que você leu, entre as mulheres.

“Marriage Market Takeover” (“invadindo o mercado de casamentos” na tradução da BBC, onde vi a notícia) é um vídeo que viralizou (clique na legenda para ativá-la), compartilhado no Facebook mundo afora. É uma campanha publicitária em estilo documentário feita por uma marca de produto de beleza para as chinesas. Atenção: “mercado de casamentos” deve ser entendido literalmente, como uma praça onde os pais levam cartazes com perfis de suas filhas e filhos para serem escolhidos por outros pais.

O caso é o seguinte: na China a prioridade das mulheres deve ser o casamento e a maternidade e elas são obrigadas a se casar até os 25 anos. As que não obedecem a essa regra são chamadas de “as mulheres que sobraram” – as “sheng nu”. “As pessoas acham que uma mulher solteira é incompleta”, diz uma delas. Para as famílias, é falta de respeito a filha que não se casa até essa idade. “Na cultura chinesa, respeitar os pais é o mais importante”, diz uma mulher que não consegue segurar o choro. “E não se casar é visto como o maior sinal de desrespeito”. Um pai diz que morreria do coração se sua filha não se casasse.

O presidente da empresa explica que fez o vídeo como parte de uma campanha para inspirar as mulheres a tomarem seu destino nas mãos. E que mostra “um problema da vida real de mulheres chinesas talentosas e corajosas que são pressionadas para casar antes dos 27 anos, por medo de serem rotuladas como ‘sheng nu’” – mulheres que sobraram.

O vídeo tem sido apreciado pelas chinesas que estão lutando contra o estigma e resistindo ao casamento. “Eu sou solteira e precisava ver esse vídeo para saber que não estou sozinha e não tomei as decisões erradas. É possível ser feliz sem um homem. Não deveríamos ser punidas por nossas escolhas, já que não estamos prejudicando ninguém”.

Da China voltamos pro Brasil. Na nossa tradição as comemorações do casamento incluem – ou incluíam até outro dia – a despedida de solteiro para o homem e o chá de cozinha para a mulher. Essa diferença fala mais sobre nossas concepções do feminino do que a Emília quando engoliu a pílula falante (no Sítio do Picapau Amarelo do Monteiro Lobato).

O ritual do homem diz que ele casa e se despede da vida de solteiro. Bem, se ele se despede, ele renuncia; isso significa que todos reconhecemos uma dimensão de perda para o homem com o casamento. Se tais perdas são ou não importantes é outra questão (e parece que não são). Na série Mad Men o par central da trama é formado por Betty e Don Draper, um casal dos anos 60. Betty, embora casada, vive numa solidão dolorosa. Antes de se casar era modelo, mas abandonou a profissão para ser exclusivamente a esposa e mãe de 3 filhos. Ele, bem, ele continua fazendo tudo o que quer.

Já o ritual da mulher, até bem pouco tempo, anunciava aos quatro ventos que ela estava, inteira, comemorando que chegou lá – naquelas que eram (que deveriam ser) suas prioridades desde seu nascimento: casar e ter filhos. E, portanto, que ela não se despede de nada porque a nada renunciaria. Desse modo a dimensão de renúncia, no caso da mulher, fica inteiramente invisível – inclusive para ela. Afinal, o casamento não seria a realização do seu sonho sonhado desde que nasceu?

Pois bem: andava eu pensando sobre essas coisas quando vi, nessa semana, uma cena interessante enquanto caminhava por uma rua perto de casa. Conto no próximo.

Publicado por

Marcia Neder

Marcia Neder é psicanalista com Pós-doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-SP, pesquisadora e autora de vários artigos e livros. Seus últimos livros publicados são: "Os filhos da Mãe" lançado em maio pela Editora Leya/Casa da Palavra e "Déspotas mirins: o poder nas novas famílias" (Editora Zagodoni).

22 comentários em “Mercado de casamento opera em baixa”

  1. Você está cada vez melhor!Bandida! No meio da cena política de horror que estamos presenciando e por ela sofrendo , expectantes, você me vem com essa conversa e nos deixa mais expectantes.Isso sim é golpe e de mestre!

    1. Criatura!!!! eu é que preciso ler você, nossos bilhetinhos do colégio já estão gastos! Então o suspense tá bom né? Agatha Christie é um norte na minha vida… um beijo.

  2. Oi Prof, tudo bem? Vi-me no seu texto.. O tempo passa, o tempo voa, mas o objetivo da vida da mulher ainda é se casar e ter filhos. Ontem mesmo, mostrando pra mãe de uma amiga as fotos da casa nova da minha irmã, (eu estava toda orgulhosa de ela ter conseguido tudo sozinha) a primeira coisa que a senhora perguntou foi se ela era casada e tinha filhos.. Aí eu respondi que não e ela disse com espanto “Ah, é solteirona que nem você!”. Eu ri e concordei. Mas confesso que esse peso ainda me assombra e que ainda conservo o desejo de casar e ter filhos…e que muitas vezes já me senti renunciando a isso, enquanto estou buscando outros concursos.

    1. Flávia querida, bom te ver aqui – e ver que você se viu aqui! Estamos próximas… Excelente depoimento esse seu! Vou guardar com carinho prá inclui-lo nas próximas reflexões. Ainda bem que você tem bom humor prá aguentar um comentário desses sem se ofender. E ainda fazer graça. Talvez por perceber que não é pessoal mesmo, é alguma coisa que diz respeito às expectativas sociais do que significa ser mulher né? Tomara que nossas conversas aqui possam te ajudar a segurar esse peso que você diz que te assombra e, quem sabe, a transformá-lo. Muito bom ter você aqui na conversa. Um beijo.
      PS: agora vc tem também a opção de se inscrever no blog prá receber automaticamente o aviso de postagens novas.

  3. Oi Márcia, obrigada por nos brindar com mais um brilhante texto que leva a tantas reflexões… A história chinesa mostra muito bem como o capitalismo “naturaliza” a ideia de que precisamos nos “completar” com o casamento e com filhos… E aí quando isso acontece, continuamos divididas, nos sentindo culpadas por gostar de ter uma profissão, por não colocarmos o casamento e filhos como prioridade… não dá pra ser tão importante quanto?
    E a maioria dos homens não percebe como isso é também opressor para eles… tem que sustentar a casa, tem que ser macho, tem que…tem que…
    Estamos vendo como na Suécia os pais estão sendo obrigados a tirar licença-paternidade por pelo menos 3 meses… e isso soa estranho para nós…
    Importante lembrar que estamos em 85 lugar em igualdade de gênero, entre 145 países… segundo o Fórum Econômico Mundial…
    Temos muito que avançar ainda e é muito bom aprender com vc… e sobre o que será o novo texto? Curiosa. Bjs

    1. Oi Ludmila obrigada! Essa história da Suécia não me surpreendeu – dá uma olhadinha lá no meu “Déspotas mirins…” que você vai ver que citei uma estatística e a da Suécia, que era a mais avançada, ainda assim fica muito aquém do que se imaginava. Não diria que essa ideia do feminino como procriador é do capitalismo: bem antes dele a mulher já era identificada com a procriação… e o imaginário cultural tá cheio de exemplos (meu próximo livro torna isso ainda mais visível, você vai ver). Pois é, nesse quesito de igualdade de gênero imagina as pesquisas internas, as diferenças gigantescas que existem dentro do próprio país (o nosso). E o próximo post? Que bom que te deixei curiosa! Você se inscreveu no blog prá receber as notificações das próximas postagens? Um beijo, muito bom falar com vc aqui tb.

      1. Oi, me referi à mudança da visão – da “mulher forte”, na China socialista, para a mulher “que sobrou” – com a mudança para o Capitalismo, como analisa a repórter no vídeo – From ‘Iron Girls’ to ‘Leftovers’ – Independent Women in China –
        https://youtu.be/QarOjjKfseo

        aguardando seu próximo livro… Bjs

        1. Ótima observação, Ludmila. É isso mesmo. As duas grandes guerras foram um marco nessas relações e a emancipação das mulheres foi uma bandeira do comunismo no início do século passado. Além disso, a Suécia largou na frente na legislação pondo fim ao chefe de família poucos anos depois da primeira década daquele século. Digo aqui de cabeça mas os dados estão lá nos Déspotas, onde analiso detidamente essa questão da emancipação feminina – à qual se tentou atribuir (ou se tenta) a situação atual da “falta e limites” da criança. O que, como vocë sabe eu discordo e para isso criei o termo “pedocracia”, apontando para um movimento cultural bem mais amplo e mais enraizado nos séculos anteriores.

  4. Embora seja uma sheng nu, amei, Os cuidados necessários para a idiopatia que hoje grassa no País aqui se desvelaram em boa prosa. Simpática e agradável. Valeu, minha querida! Beijobeijo

    1. Uma sheng nu, não sei, mas com certeza uma mulher que escolheu. Vou continuar no próximo. Vai na barra do lado esquerdo e se increve ai você vai ser notificada sempre que eu atualizar o blog. Aí podemos seguir conversando. Beijo beijo

  5. Marcia, quero a continuação! Li alguns comentários tbm e, poxa, uma dura realidade do outro lado do mundo nos é tão familiar. O peso da cultura e assujeitação são os grilhões a serem rompidos, estamos buscando isso. Tenho visto a propaganda trazendo alguns exemplos…qd o capitalismo se apropria da coisa, é porque o caminho já está percorrido… desejo que nossas filhas e filhos e netos e netas vivam num mundo melhor. Lembrando que não levanto a bandeira anticasamento, e sim, a da arte do encontro! Abs, Ju

    1. Que bom que te deixei com gostinho de quero mais, Juliana! Sim, a continuação tá vindo. O mundo gira e faz movimentos e, no entanto, as mudanças, ah! as mudanças… levam muito mais do que séculos e oceanos né? Concordo com você: o encontro é uma arte e prá quem sabe cultivá-la… é uma experiência e tanto. Um beijo, querida.
      PS: você já se inscreveu aqui no blog? Agora tem essa novidade: inscreva-se prá receber as atualizações automaticamente.

  6. Marcia,
    Adorei a leitura!
    Nunca parei para pensar sobre a despedida de solteiro do homem. Realmente, a despedida nada mais é que renuncia, e nós mulheres… tadinhas… somos quem mais renunciamos no casamento!
    Estou aqui, dando risadas sozinha, como uma doida, pois comecei a viajar no texto e imaginar um monte de coisas.
    E os chineses… são muito loucos, que cultura mais retrógrada. Em pleno século XXI, as mulheres são casadas mesmo contra a vontade, para não ficarem com o titulo de “MULHERES QUE SOBRARAM”.
    Beijos.

    1. Pois então prepare-se, Erika! A gente vai vivendo tudo e todos os costumes e tradições que nem se dá conta. Mas quando paramos prá pensar no óbvio é um espanto e uma descoberta. E sabe que você me deixou aqui mega-hiper curiosa querendo rir também com você? Quero ir com você nessa trip e nisso tudo que você tá imaginando sozinha. Conta aqui prá gente, quem sabe não vira uma volta ao mundo bem animadinha?! Quanto aos chineses, você conhece a política do filho único que imperou durante todo esse tempo né?
      Você já se inscreveu no blog? Agora você pode fazer isso: inscreva-se aí prá receber as notificações quando eu postar. Pedi prá Cecé e prá Mina te avisarem quando postei pois não tenho como entrar em contato. E divulga entre seus amigos que é sempre bom encher o navio da viagem com muitas fantasias. Um beijo.

  7. Márcia,
    Já falei com algumas amigas sobre seu blog. Nossa… é muito bom!
    Beijos.

    1. Que maravilha Erika! Que bom que tá repercutindo em você. Legal a gente poder usar a internet prá elevar o nível das trocas afetivo-intelectuais-existenciais né? Tomara eu possa contribuir. Com a ajuda dos leitores começo a acreditar que dá prá melhorar! Já se inscreveu prá garantir a notificação automática das atualizações? O próximo já vem vindo prá acabar com o suspense! Um beijo!

  8. Adorei! É triste, mas é isso mesmo (e não só na China…aqui a ‘ditadura do casamento’ é mais silenciosa, e talvez por isso mais perniciosa) Ansiosa pelo próximo post pra saber que cena interessante é essa 😉

    1. Concordo. Talvez o próximo post ajude a entender porque sendo mai silenciosa é também mais perniciosa. Ele tá pronto prá ser postado mas é que tem outra novidade urgente também, e prá amanhã ao que tudo indica … Adorei te deixar curiosa. Já se inscreveu prá ser notificada na hora do post?

  9. Marcia, adorei esta história da China, é um absurdo, mas a continuidade de uma cultura, quase estática, no universo feminino é terrível. Afinal, estamos no século 21. Esta cultura da necessidade de um homem,ao nosso lado,para darmos conta de vencer me deixa muito “P”. Fiquei viúva com 46 anos, cujo casamento foi maravilhoso. Três filhos. Frederico com 24 anos já formado e trabalhando. João Marcelo 20 anos, cursando Relações Internacionais na UNB. Amanda com 18 terminara o Ensino Médio. A família, muitos amigos, cobraram- me um novo casamento para terminar de criar meus filhos e torná- los pessoas de bem, como o pai esperava. Soltei a onça marruá, que existe dentro de mim e gritei. Peraí, caras pálidas, e eu, com 2 Cursos Superiores, Mestrado, proprietária de meu curso, estou aqui para quê? Vão a pqp, não quero casar, já casei, já tive o amor que queria, meus filhos.
    Todos se formaram, JM foi para Londres, estudou tudo o que quis, resumindo todos estão formados, excelentes profissionais e felizes. O quê ainda ouço? Nossa! Como o Mozart( nome do meu marido) se orgulharia do grande legado dele, mas também deixou você bem, financeiramente, foi fácil. Lá vai um provérbio: ” Todos falam das pingas que bebo, mas ninguém sabe os tombos que levo.” Segue, Marcia, você está mexendo com a cabeça de muita gente, principalmente, com a minha.” Estou amando. Beijos.

    1. Zezé obrigada!!! Vou guardar o provérbio e a sua história. Gostei muito de saber que ando mexendo com a cabeça de muita gente – e da sua!. Seguirei e, se assim continuar, muito bem acompanhada! Um beijo (tenho visto aumentar o número de leitores do Blog aí de Brasília… obrigada por sua divulgação, a parte verdadeiramente difícil desse trabalho). (Já se inscreveu prá receber no seu e-mail as notificações de posts novos?).

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