A camiseta rosa

Os homens se casam e se despedem de sua vida de solteiro. E, se acreditarmos na tradição, as mulheres não sofrem das dores de despedida de uma vida que, ao contrário, deixariam prá trás com alegria. Elas comemoram com um chá de panelas o reluzente futuro que terão, simbolizado pela cozinha, espaço privilegiado do seu reino e sala do trono da rainha do lar.

O tom nostálgico da despedida que embala a decisão do homem de se casar não faz parte do costume casamenteiro do chá de panela (que importamos dos Estados Unidos, o “kitchen shower”). Esta reunião só de mulheres atesta a felicidade da noiva entrando na sua “verdadeira” vida e realizando sua vocação: casamento, filhos, família.

Despedida de solteiro exala álcool, farra, luto e melancolia pelo que se perde, e anuncia o crepúsculo de uma vida que se vai. Chá de cozinha emana o cheiro da brisa do alvorecer do novo dia, do futuro que chega trazendo a euforia de um sonho realizado.  O noivo, “coitado”, se entrega a um grande sacrifício. Mas a noiva é toda ansiedade: não vê a hora de manusear a artilharia culinária com a qual dominará sua nova vida e comandará sua infantaria doméstica.

Pensava eu nessas coisas quando esbarrei numa cena inusitada. Andando na rua vi umas mulheres dançando, gritando, cantando com copos e garrafas nas mãos, numa verdadeira folia carnavalesca. Inibição zero – nelas e em mim, bisbilhotando a vida alheia. Essa farra feminina num espaço público de uma tarde de abril nada tinha a ver com as licenças concedidas pelo período momesco.

Uma quadra adiante as mulheres pararam em volta do bendito fruto: o único homem do grupo estava com os pés apoiados no hidrante da esquina, tocando violão e cantando; em torno dele elas iam chegando e fazendo a festa.

Todas vestiam bermuda jeans e camiseta rosa com uma inscrição que lutei sem descanso prá decifrar. Impossível; a frase me escapava naqueles corpos festantes cujos movimentos animados escondiam a legenda que exibiam e na qual, acreditava eu, estaria a chave e o sentido daquela comemoração.

Por mais que tentasse não conseguia ler o que estava escrito na regata rosa. Até vislumbrava um fragmento aqui, outro ali, mas nada que formasse uma sílaba sequer. Desanimada, só me restava ir embora, vencida, convencida da pequeneza da minha existência, incapaz que era de imaginar motivo e objeto de tão insólita festividade.

Meia volta volver, tomei o rumo de casa. A poucos metros do portão um som insistente surrupiou minha atenção.

– “Moça… moça… por favor, você pode dizer prá que lado fica a praia?”

 Oi? Eu? Será que estão falando comigo? Na dúvida continuei andando.

– “Moça, oi… desculpa… a gente quer saber se a praia é prá lá”.

Bem, não havia dúvida: a conversa era comigo. Olhei prá trás e mal pude acreditar: lá estava “ela” – a camiseta rosa multiplicada em várias mulheres e sua frase enigmática que, a essa altura da minha vida já tinha se transformado numa daquelas preciosas fórmulas esotéricas impenetráveis dos alquimistas. Fascinada, paralisada, frente a frente com “ela” e a um passo da revelação, li: “my friend is getting married and I’m getting drunk” (minha amiga está se casando e eu me embebedando). Queria anotar mas a ocasião não permitia; só me restava confiar na minha memória.

camiseta rosa– “A praia? Vocês querem saber se a praia é prá cá? Não, é pro outro lado, prá lá”.

– “Viu? É prá lá.  Muito obrigada, moça… Vamos, é prá lá que a gente tem que ir”.

Que sensação de triunfo!… Arrancada das trevas da ignorância já podia ouvir a euforia barulhenta dos fantasmas arrastando móveis e jogando fora panelas e chás. E a lembrança da despedida de solteira da Marisa foi chegando sem avisar. Agora eu era um Ulisses vitorioso voltando prá sua Ítaca, um Napoleão cruzando o Arco do Triunfo (que ele bolou mas não cruzou).

Ligando os pontos lembrei que, há exatos 6 anos, a Bruna, irmã da Marisa, organizou em segredo sua despedida de solteira. Contratou um stripper que dançava enquanto as mulheres passavam as mãos pelo seu corpo. E uma drag queen que repetia mil vezes a pergunta, obrigando a Marisa a responder porque tinha escolhido se casar com seu noivo – dentre tantas outras brincadeiras nada recatadas e do lar.

Que chá de panela que nada! Minha amiga tá se casando e eu tô tomando um porre. Não é disso que preciso prá ver minha amiga abandonar sua boa vida de solteira? A camiseta rosa expunha prá quem quisesse ver a dimensão de renúncia na mulher que escolhe se casar e que é tão evidente no caso do homem.

Por que o governo precisa pressionar as chinesas para se casarem se não pelo fato delas estarem se recusando à tal renúncia? Direito de escolha impensável ainda para a geração da sua mãe, como aquela que, no vídeo, tenta explicar a solteirice da filha por uma falha da moça e não por uma escolha:

– “Sempre achei que ela tinha uma ótima personalidade. Mas ela não é muito bonita, fica na média. É por isso que ela é uma ‘mulher que sobrou’”.

Reconhecer essa dimensão de renúncia por parte da mulher está longe de ser um acontecimento trivial, como mostra a história das mulheres americanas nas décadas de 1950 e 1960. Mas, como um post é um post e nada mais que um post, eu conto no próximo.

Publicado por

Marcia Neder

Marcia Neder é psicanalista com Pós-doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-SP, pesquisadora e autora de vários artigos e livros. Seus últimos livros publicados são: "Os filhos da Mãe" lançado em maio pela Editora Leya/Casa da Palavra e "Déspotas mirins: o poder nas novas famílias" (Editora Zagodoni).

14 comentários em “A camiseta rosa”

  1. Adorei Márcia!! Vivemos nesta mistura de arcaico, modernidade e afins. Tem outro rito que os casais estão optando por realizar, que é o chá bar. Homens e mulheres comemoram a despedida de solteiro juntos e, de quebra, montam seus bares…mudando um pouco de assunto, vc já viu o novo tipo de chá de fraldas? Chama-se chá revelação, organizado para apresentar a todos, inclusive aos pais, o sexo do bebê. ..acho que rende mais um texto! !!

    1. Como é o chá bar, Juliana? Você já foi a algum (s)? É tipo os casais ficam juntos como numa festa ou homens com homens e mulheres com mulheres, bolinhas e luluzinhas? Nunca ouvi falar desse chá de fraldas: chá revelação? Você tá me fazendo pensar que todas essas novas modalidades de comemoração – casamentos que parecem aniversários de crianças e vice-versas, aniversários de crianças que parecem grandiosas festas de casamento, tal a produção envolvida, pode mesmo render mais um texto! Vamos ver, vai me mostrando mais dessa realidade desconhecida! Um beijo.

      1. Pois é Marcia, as coisas são rápidas! O Chá bar é com homens e mulheres juntos, nunca fui a um, mas já ouvi pessoas comentando (o pessoal diz que é bem divertido). Já o chá revelação (tbm nunca presenciei, apenas de relatos) é assim: a mulher faz o exame para saber o sexo do bebê, alguém pega o resultado (o organizador da festa ou um parente) e não conta pra ninguém (nem pros grávidos pai e mãe), na festa, a decoração é azul e rosa, o bolo é “unissex” por fora e, quando cortado, sua massa revela o sexo do bebê (azul-menino, rosa-menina). Os convidados, antes da revelação, dão seus palpites, fazem apostas, participam de algumas brincadeiras (participam os casais-homens e mulheres), e tals. Enfim, o show da revelação de sua majestade-o bebê!

        1. ahahah Juliana, isso aí mesmo! E sabe o que seu comentário me fez pensar? Parece que essa história de “modernidade líquida” tá meio esquisita – pois, pelos exemplos que você citou, parece que tudo na vida tem se tornado motivo para celebração, festa – e portanto, encontros! Um beijo, querida.

  2. Adoro seu blog ! Leitura gostosa e temas que nos levam a reflexão . O de hoje, a começar pelo título , achei genial !
    E a pratica do chá de panela , ainda tão arraigado a nossa cultura, e’ no mínimo reflexo de uma sociedade ainda machista !
    O dia das Mães se aproximando e vejo post dando dicas de presentes … jogo de panelas, eletro domésticos , móveis e por aí vai … continuam mantendo a mulher presa ao lar !!!

    1. Obrigada minha amiga, é bom saber que mesmo tocando em temas espinhosos dá prá ser agradável. Lembra que esse post do chá de panela é a continuação /suspense daquele anterior? Não tinha pensado nisso e vc deu uma boa ideia – do dia das mães e os “presentes” pensados e divulgados prá ela. E o pior é que é assim mesmo até hoje! Quem sabe consigo incluir essa ideia no próximo (que já tô escrevendo, prá contornar a dificuldade desse momento em que, finalmente né??? – Os filhos da mãe estão conhecendo a luz do dia?). Um beijo.

  3. Adorei o post novo!!! Gostei do tema e percebo entre meus amigos diferentes formas de lidar com essas situações que envolvem o casamento.
    Tenho o sentimento de que a nossa geração não mais se priva de discutir tabus e de contrariar o senso comum, seja em relação ao chá de panela, a despedida de solteiro ou o casamento em si.
    Vejo uma imensidade de tratamentos dado ao tema. Algumas pessoas são apenas tradicionalista, embora não comprem a ideologia por trás da ideia. Outros abominam o tradicional, mas adoram o romantismo. E assim vai… Há entre eles até mesmo aqueles que apenas não se importam com nada disso.
    Conheço aquelas pessoas que “nasceram para casar” até aquelas que elaboram”contrato de namoro” com a finalidade de evitar a configuração de uma união estável…
    Gosto de pensar que nós vivemos numa época em que as regras sociais não são obrigatórias.
    Por outro lado, percebo também que as vezes ignoramos, ainda que inconscientemente, o espírito machista que determina nossas opiniões. E mais, não só em relação ao machismo, mas também racismo e preconceito. Não é fácil nos desvencilharmos do meio que fomos inseridos, mas certamente temos mais armas para adotarmos a política que nos parece mais acertada (ou desejada).
    Hoje li uma reportagem que achei muito bacana sobre as mães que padeceram em um paraíso diferente do da mente coletiva. Espero que seja contributivo:
    http://tab.uol.com.br/maternidade#filho-da-mae

    Beijos!!!

    1. Ynara querida, vou ver o link com calma. Mas desde já vou dizendo que esse contrato de namoro é uma novidade prá mim! Não tinha ouvido falar ainda sobre ele: é prá evitar a complicação legal da confusão com o casamento ou há mais coisa envolvida? Quanto a essas determinações inconscientes de nossas opiniões e ações, concordo com você e talvez seja este um bom impulso para minha escrita: provocar a reflexão sobre o que parece óbvio e estabelecido, sagrado, intocável, imutável! BEijo (você já se inscreveu no blog prá receber as notificações de posts novos?).

  4. Intentaram um tal de “Chá Bar” agora. Uma maneira de incluir os homens nessa chatice (rs).
    Claro que é brincadeira, mas as coisas tem mudado. Pelo menos no meu teve esse Chá Bar. Na véspera de casamento teve a minha despedida e para as mulheres uma espécie de “clube da luluzinha” chamado Chá de Lingerie. Depois nos encontramos todos na despedida.
    As coisas tem mudado aos poucos. Mas sempre achei meio machista esse tipo de coisa.

  5. Marcia, adorei seu post, nunca fui uma jovem muito dócil, mais para contestadora mesmo. Tendo 4 irmãos acima, pai fazendeiro, mãe, quase generala, fui interna 10 anos. Imagine ser rebelde, em CG, na década de 60? Impossível. O mundo mudou, graças a Deus, mas, inquieta como sou,quero mais, muito mais. Que mudem os Chás, com ou sem presença dos dois sexos. Como dizem meus filhos fui anos luz em minha época. Mudei- me para Goiânia, conheci meu goiano, passei na UNB, onde ele cursava Engenharia. Claro, queríamos estudar juntos, mas eu passara também na UFG, claro que meus pais decidiram que eu faria UFG, em Goiânia, só que eu estava cansada de decidirem por mim. Fiquei grávida, casei, quase provoquei a Terceira Guerra Mundial. Lixei- me. Não tive festa, casei às 10 h da manhã de vestido de crepe de seda amarelo. Pensei que meu pai enfartaria, mas logo viu que eu estava linda e feliz. Vim fazer UNB, fui feliz por 24 anos e meio, fiquei viúva há 19 anos. Meus filhos são formados e super encaminhados. Minha única filha, caçula de 2 irmãos, Psicóloga, casou com tudo certinho, eu já viúva, fiz uma festa linda. É daí? Ela pediu o divórcio no nono ano de casamento. Quando casei, não davam 6 meses para o meu casamento. Quando minha filha casou, todos diziam que eram a imagem da felicidade, noivo em lágrimas. Diante disso tudo. Que venham mudanças. Que o amor seja eterno enquanto dure. O meu dura até hoje.
    Marcia, fugi do tema, mas não me importo, queria que você me conhecesse um pouco mais por que admiro muito o seu trabalho. Beijos. Zezé.

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