E amores não gozados

– “Tá muito grande, mãe! Aqui tem material para dois posts!”.
– “Julia, não dá pra ser menor do que isso”.
– “Ninguém vai ler assim, tem que ser texto curto. Divide em 2, 3…”

É sempre assim quando tenho que escrever alguma coisa, como se dentro de mim morasse um Procusto me obrigando a deitar no seu leito. Esse bandido normalizador, personagem da mitologia grega, tinha uma cama de ferro exatamente do seu tamanho. O fofo oferecia sua hospitalidade aos viajantes perdidos e os convidava para passar a noite no seu leito. Se o infeliz fosse maior, ele cortava o que sobrasse; se fosse menor, esticava o pobre à força.

Vivo uma DR permanente com meu Procusto. Gosto de textos enxutos, mas penso escrevendo e escrevo para pensar, lutando com ideias que precisam de tempo e de espaço para nascer. É irritante o prazer mórbido dessa criatura ali à espreita, assistindo minha luta para caber em suas medidas inflexíveis.

Procusto é também o psicanalista que tenta fazer o paciente tornar-se conforme a norma e não conforme ele mesmo. Normalizador, ele força a barra para os outros caberem em suas medidas, encaixando-os em suas teorias e interpretações.

Procusto, enfim, é nossa imagem quando a impomos aos outros, coroando-as como a referência e a régua do mundo: “eu sou o modelo (da perfeição, ou do normal)”; viva como eu, seja como eu, com meus dogmas e meus preconceitos. E essa era e é uma das minhas questões quando comecei esse meu blogue Amores gozados. Como é que nos tornamos assim tão caretas, tão intransigentes depois de vivermos a turbulência dos costumes ocidentais da segunda metade do século vinte e de mais de 150 anos de psicanálise?

Balançamos tabus falando sobre o que deveria ser calado; lutamos para mudar costumes, por liberdades sexuais e liberdade das mulheres; batalhamos, enfim, por valores diferentes num século que já tinha vivido duas guerras mundiais com o assassinato em massa do Holocausto. E ainda continuava sua marcha beligerante. Cantamos a paz com Woodstock e os hippies, vivemos os sonhos da contracultura e da sociedade alternativa que se espalharam pelo mundo ocidental buscando “paz e amor”, tentando parir uma vida movida por outros valores que não o frenesi do lucro, do dinheiro, do poder e das armas nucleares. Parecíamos mais interessados em criar do que em destruir, já tendo vivido o desprazer de conhecer o alcance do nosso poder de destruição que a guerra fria e a guerra do Vietnã insistiam em alimentar.

Os homens deixaram cabelos crescer e recusaram-se a lutar no Vietnã, mas muitos acabaram tendo que trocar suas guitarras pelas metralhadoras: ra-ta-tá-tá… As mulheres avançaram sobre espaços nos quais puderam sonhar novos sonhos além da família margarina, mas a maternidade, se não fosse evitada pela revolucionária pílula anticoncepcional que acabava de ser inventada, trazia o medo da escravidão à família e do confinamento doméstico. As que não a evitavam continuaram buscando meios de serem mães e mulheres diferentes de suas mães, tias e outras das gerações passadas, elas mesmas insatisfeitas e desejando para suas filhas uma vida diferente da que tiveram.

Em meio à guerra do Vietnã a BBC fez sua primeira transmissão mundial, ao vivo via satélite, assistida ao mesmo tempo por 26 países, 35 milhões de pessoas. A emissora pediu aos Beatles que fizessem uma música que pudesse ser entendida por todos no mundo. Lennon compôs All you need is love especialmente para a ocasião e o sucesso foi imediato. Todos identificaram-se com a música que vinha cantar o seu desejo, o desejo de uma geração, especialmente a dos “baby boomers”, daqueles que nasceram depois da guerra (mais ou menos entre 1946 e 1964). (Clique nesse link para assistir https://vimeo.com/222978679 ). (Aqui há mais informações sobre esse evento de 1967 https://www.thebeatles.com/feature/our-world-global-satellite-broadcast )

A vida agora teria valor ou sentido se fosse para amar e ser amado. A ideia não era nova, foi o cristianismo que trouxe essa valorização do amor como a virtude suprema. Mas o amor nesse momento era um amor diferente, que tentava se livrar da carga de pecado; incluía o corpo e via o prazer como um bem a ser gozado na vida terrena.

Como entender que, depois de tudo isso, de décadas e décadas de insatisfação com o impulso de destruição, que todos trazemos em nós e que vimos explodir no passado, amanhecemos no século seguinte mais intransigentes e mais intolerantes? Nostalgia de um passado que não voltará? Verdades bem assentadas na civilização ocidental foram atingidas pela turbulência do século XX, como a mudança radical que a família sofreu. E com ela nossas ideias sobre o amor.

Nostálgicos suspiram lamentando o fim do amor eterno, que dizem ter sido substituído por um “amor líquido”. O que eles não entendem é que o amor contemporâneo não cabe mais nas medidas do passado. Aqui no blogue venho contando histórias de personagens que dançam conforme essa música, que mistura a repetição e a recusa de costumes. “A encalhada”, a despedida de solteiro e o mercado de casamento operando em baixa inauguraram esse espaço falando sobre isso. Ressuscitei fantasmas em muita gente com o amor de MP e M, em cuja história introduzi a internet, o novo ingrediente de amores antigos numa história que ainda não terminou.

O romance de Christian Gray e Anastasia permitiu que eu desenhasse as dimensões estreitas do amor erótico, tal como visto pelas patrulhas feministas. A clínica psicanalítica oferece um espaço privilegiado para conhecermos o humano no qual a regra a ser obedecida pela pessoa é falar livremente sobre o que passar pela sua cabeça, sem o medo de ser julgado, reprovado ou doutrinado. Nelson Rodrigues dizia: “Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava”. Isso que ele dizia sobre o sexo serve perfeitamente para descrever essa intimidade propiciada pela clínica terapêutica livre de desejos doutrinários – seja sobre costumes, ou valores ou ainda políticos e ideológicos.

Jane Fonda, com sua história e a de seus casamentos, desafia o script social que impõe data de validade para a sexualidade feminina abrindo um novo fio em nossas conversas sobre o amor. Como Catherine Deneuve também já passando dos 70 anos de idade, essas duas mulheres falam sobre o amor em suas vidas mostrando que o conflito da mulher com a idade, tratado pelas pessoas como questão de “vaidade feminina”, é bem mais do que parece.

Jovens que passaram ou não pela maternidade trouxeram na bagagem o forte desejo de liberdade gritado por aquelas feministas: “primeiro eu”, e não o homem ou a criança. As mães talvez também tenham se tornado avós e se perguntem, como eu quando escrevia “Os filhos da mãe”: o que significa ser mãe da mãe dos filhos da mãe?

Não é nada casual que, tendo interrompido esse blogue há uns dois anos, eu volte a ele em Setembro – mês que comemoro primeiro o meu nascimento e, dez dias depois o da filha da minha filha. Seriam ambos ocasião de grande celebração da vida e de impacto, como aquele da sombra dos amores não gozados que cai sobre nós?

Publicado por

Marcia Neder

Marcia Neder é psicanalista com Pós-doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-SP, pesquisadora e autora de vários artigos e livros. Seus últimos livros publicados são: "Os filhos da Mãe" lançado em maio pela Editora Leya/Casa da Palavra e "Déspotas mirins: o poder nas novas famílias" (Editora Zagodoni).

12 comentários em “E amores não gozados”

  1. Alô Márcia, não sei o que significa ser mãe da mãe dos Filhos da mãe, não tenho essa experiência, mas poderia imaginar como seria, apesar de ser um pouco temerário porque a idealização sempre nos conduz à perfeição. Uso o expediente do livre pensamento que força a barra para que tudo seja risonho, afinal nasci no final da guerra, vivenciei as grandes transformações sociais, entrei no século novo e procuro obsevá-lo com olhos bem abertos. Me posiciono politicamente, sou intelectualizada, possuo o orgulho de uma formação de caráter bem estruturada e então…….. posso ser uma excelente mãe da mãe dos filhos da mãe! Que bonito! Só que as coisas não se regem por atributos. Nesse caldeirão de vivências temos ingredientes saborosos e indigestos. Nem sempre podemos conduzir a biga com as rédeas firmes que o tropel nos impõem. Não se vive sozinha sem os respingos dos contatos interpessoais, que ora acrescentam, numa troca valorosa, ora nos incitam ao combate. Deixei fluir o pensamento e lá dentro do eu cérebro me avisa que já são 1:45h da madruga. Cortou o barato. Mas não ficará por aqui, elaboração, meu caro Watson . Só para fecha a torneira, a palavra intuição se fez presente e mandona, queria entrar em qualquer frase desse textão. Beijos

    1. Tania, suas palavras me levaram para o próximo post já pronto e que parte dessa pergunta que aqui deixei propositalmente no final e aberta. Boa observação sobre a idealização, embora o pessimista talvez só consiga imaginar a imperfeição. Eu também uso todo o tempo a livre associação mas olha só, ela não me joga só nesse lado ensolarado das coisas mas, como vc, comigo ela também caminha o tempo todo com o trabalho da elaboração. Boa lembrança do meu caro Watson, porque era exatamente no Sherlock que andava pensando nessse post e em algum que está pronto na sequência. Como eu disse, minha livre associação não me manda só sorrisos, há charadas aos montes que curto muito se não desvendar, o trabalho que me dão dar-lhes algum sentido. Seu texto é lindo, Tania, já li várias vezes esse seu comentário saboreando-o.

  2. Olha, Márcia, ainda preciso voltar no seu texto, no meu e na sua resposta. Vou fazê-lo, muito mais tarde, o dia e o meu em torno me dispersa. Meus pensamentos se plasma no silêncio, longe dos empata fofa. Volto assim que puder. Beijos.

  3. Você falou dos baby boomers e a percepção que têm da vida e isto te atrai. Eu nunca me detive especialmente sobre isto. Não de uma forma mais ampla . Sei de mim e daqueles que estão ao meu redor, pertencentes à mesma geração. Poucos entraram nesse século somando o viver da era passada, tão inovadora e libertadora, principalmente para a mulher, trazendo já incluídas nas suas atitudes, tais inovações. Vejo as que me cercam, arrastando o”dever” de mulher/ esposa/ dona de casa, uma rotina viciosa, não viçosa. Carregam os seus dias acorrentadas , sem erguer as cabeças e colocá-las para fora. Mesmo as que se libertaram mais amplamente em relação ao cônjuge, se aprisionam no seio da família. Os filhos da mãe, adultos, independentes em suas vidas, mas dependentes da mãe. Não por incapacidade e sim por comodidade, afinal ela está ali, quebra o meu galho. Como algumas gostariam de blindar e se fazer libertas na sua individualidade. O novo século, não trouxe , para elas, abertura para a coragem. Outros ingredientes se fazem necessários. Tento, nas poucas amigas que me permitem questionar , refletem, mas é fogo, de palito de fósforo, que se extingue num átimo. Por enquanto, é isso. Reflexões em aberto.

  4. Trazemos inúmeras camadas que vão se empilhando com o passar dos anos. No meu entender, essa pilha é móvel , caso se permita retirá-la da sua formação. Engraçado, formação! O quanto de possibilidades ali está, e essa formação poderá alavancar o olhar para a vida. Não se rejeitam as experiências ensinadas e as descobertas que são feitas. Mas a formação pode também travar iniciativas. Mas se houver coragem, a formação se complementa com a transformacão. Essa camada empilhada fica como base de sustentação para unir as experiências do século passado, acrescentar as desse século e, abrir -se, aprender de novo a olhar o mundo , maravilhado, como pela primeira vez.

    1. Tania, considerando todos os seus comentários, além do que já falei em um deles, primeiro preciso me corrigir: eu não consegui (ainda) encontrar a expressão correta do que sou e provavelmente editarei o texto: mãe da mãe dos filhos da mãe não é exatamente o que queria dizer, já que sou mãe da filha da mãe Julia (numa referência direta que quis fazer ao meu livro, Os filhos da mãe), e ela é a mãe da Manuela. Queria ter encontrado uma alternativa para o caminho inverso sem usar a palavra “avó”. Nesse primeiro post da minha volta ao blogue eu quis retomar o fio da conversa, começando pelo meu ponto de partida. Que foi, como eu conto aqui, uma curiosidade: como é que nós nos tornamos tão caretas, tão intransigentes nesse nosso século atual. Falei dos dos baby boomers, não por gostar particularmente dessa geração, mas porque essa é a minha geração, a geração dos que nasceram nos vinte anos do anos seguintes ao fim da guerra (1946 – 1964) e que viveu todos aqueles momentos da segunda metade do século passado. Pois bem, essa geração cresceu. Das jovens que passaram por aquelas ideias e movimentações feministas, algumas escolheram não ser mães e outras foram mães. Das que foram mães, há as que são avós e é de propósito que termino o texto com a pergunta: o que significa para essas jovens da segunda metade do século passado ser avó? Porque eu já escrevi um pouco sobre elas serem mães (foi o que fiz nos Filhos da mãe). Mas, e avós? Esse é assunto para os posts seguintes, porque preciso andar devagar, um post não é um livro nem um artigo. Nesse post eu me preocupei mais com a retomada do fio do blogue: meu propósito ao fazê-lo era conversar sobre o amor, sua história e suas histórias, como eu explico ali exemplificando com vários casos que fui contando (a encalhada foi o primeiro post ou um dos primeiros, e os outros vieram a seguir). NOvamente: a ideia é conversar sobre o amor, às transformações da família (afinal, não estamos vendo a patrulha para que “família” seja entendido como a “família tradicional”? Como a recusa de famílias formadas por casais homossexuais?), à aceitação de formas diferentes de amar? Nesse post essa é a minha pergunta: meu foco é o amor, os relacionamentos amorosos hoje. O conceito de “amor líquido” como eu digo no post, é uma visão nostálgica de uma forma de amor, uma recusa das novas formas de amar, uma recusa do caráter histórico desse sentimento. Enfim, é um posto tipo dobradiça: ele retoma o blogue antes, fala que eu parei de escrever aqui (por que? essa questão me mordeu – e é sobre ela que me voltarei no próximo post), o que aconteceu nesses 2 anos que me fez interromper o blogue? As respostas que fui elaborando a essa questão, quando ela começou a me incomodar, transformaram-se em alguns posts já prontos para subir).

  5. Márcia, agora vou responder rapidamente, porque já disse, que a minha concentração fica dispersa. Mas entendi perfeitamente que você falava da avó, tanto que no começo eu disse que não tinha essa experiência, mas quis fazer uma relação das que são avós e eu conheço. Dei passos atrás, falando da geração dos nascidos no final da guerra, que é a minha geração, da bagagem de conhecimentos e da educação moralista vigente, falei em formação e transformação somados à maneira que o novo século se apresenta, com novas formas de amor, de comportamento e como essas pessoas poderiam responder à essa mistura . Algumas continuariam lá atrás ou tentariam fazer a grande mistura? Teriam coragem, iriam em frente, ou era fogo que se esvanecia na duração de um fósforo aceso? Acho que captei, sim. Mas não encerrei a questão, é um fio de um novelo imenso e já estava preparada para um novo questionamento. Vou tentar perceber aonde não entendi, para ir mais além.

  6. …” O amor conteporâneo não cabe mais na medida do passado”….., certo, não existe mais, mas me pergunto: alguns conceitos, hábitos, preconceitos, temores diante de tanta abertura, etc não estão aí, encustrados? Por que uns são mais descolados e mergulham no novo século absorvendo , como esponja, sem medo de ser feliz? Por que outros , dão passadas medidas, cautelosas, olhando para trás e para os lados? O que está por trás dessa escolha ? O que trazem dentro de si, que atua como um botão regulador? Poucos nos dia de hoje, confessam, sinceramente, que compreendem os mais variados tons de formação da nova família , mas ainda, lá no fundo, ainda causam especie! O século está só iniciando e alguma coisa ainda estamos pagando para ver, sorver, degustar, engolir , fruir,com prazer ou regurgitar. Acho que é daí que a mãe da filha da mãe terá seu esboço, aperfeiçoando seu desenho , que não será definitivo, nunca, se ela se mantiver curiosa diante dessa liquidez. O que é hoje, pode não ser amanhã.

    1. Tania, a pergunta que eu fiz aí no final desse post, como eu disse em outro comentário que o faria, foi o tema do novo post. Quanto às perguntas que você me coloca, “por que uns são mais…” – em outros termos, por que uns são assim e outros são assado, eu diria: porque cada um tem a sua própria individualidade, a sua história. É uma pergunta com resposta subjetiva que não me atrevo a generalizar.

      1. Márcia, eu sei que cada um tem a sua individualidade, a sua história, e é exatamente por isso que a desconstrução da condição feminina talhada e criada para procriar, sob o mito arraigado que a mulher só se completa se for mãe, se faz necessária.

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